MINHAS LEITURAS 4 - O Homem e a Terra
- Fabio Moreira
- 5 de fev.
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de mar.

Por muitos anos - principalmente durante a adolescência - viveu em mim um sentimento de não pertencimento: a sensação de que eu havia nascido no lugar errado; a certeza de que a pequena cidade do interior de Santa Catarina onde eu cresci e vivia não era lugar para mim. Para um garoto de 15 anos que sonhava em viver da arte, Guaramirim e Santa Catarina pareciam uma prisão no meio do deserto. Meu lugar no mundo era qualquer lugar bem longe dali.
E foi então que lá por volta dos meus vinte anos me veio a oportunidade de, pela primeira vez, viver em outra cidade e tentar uma vida nova. Inicialmente eu pensei que finalmente havia encontrado “o meu lugar”, mas não demorou para que eu me sentisse deslocado, forasteiro, e por fim um evento inesperado acabou-se por revelar-se decisivo, escancarando a minha ignorância, fazendo-me ver que eu, que queria conhecer o mundo, não conhecia nem mesmo o lugar tão pequeno onde nasci e havia sido criado. O que talvez não seja nenhuma novidade, pois como Alain de Botton evidencia em seu livro 'A Arte de Viajar', “estamos convencidos de ter descoberto tudo o que é interessante numa vizinhança basicamente por ter vivido ali durante muito tempo. Parece inimaginável que haja algo novo a ser descoberto num lugar em que vivemos há uma década ou mais. Estamos habituados e, portanto, cegos.” pg. 238-239
Pouco tempo depois deste evento acabei retornando para a pequena Guaramirim e desde aquele primeiro dia tudo me pareceu que um novo mundo estava diante dos meus olhos recém abertos. As florestas, as montanhas, as plantações de arroz, o modo como caía a chuva, a estrada serpenteando entre os morros. E desde então passei a me interessar cada vez mais por aquilo que chamo de “lugar onde eu vivo”.
Já se passaram 15 anos desde então. Nesses anos todos estudei, li muitos livros, realizei algumas viagens e explorei ruas e estradas até então desconhecidas. A lista de 18 livros que elaborei no ano passado foi somente mais um dos diversos projetos que propus a mim mesmo com esse objetivo: conhecer o “lugar onde vivo.” Sendo assim, é claro que alguns dos livros selecionados tratam sobre algum tema relacionado à história de Santa Catarina. Outros, porém, são mais filosóficos-teóricos e não se referem a nenhum lugar em específico, mas dizem respeito às nossas atitudes e concepções - em resumo: ao modo como as pessoas se relacionam e veem o mundo à sua volta. São livros que pretendo ler para que meu olhar fique mais atento para as sutilezas do mundo - não só para ser um fotógrafo com olhar mais apurado e crítico, mas também porque viver ganha uma nova profundidade e significado quando sabemos ver para além das aparências.
É o caso desta obra intitulada ‘O Homem e a Terra’, minha primeira leitura de 2025 e a quarta da minha lista de 18 livros. Leitura que realizei no final de janeiro, pouco depois de uma viagem de 805 km de bicicleta pelo litoral de Santa Catarina. Em outro momento pretendo relatar esta experiência. Agora quero falar sobre essa obra que me trouxe algumas inspirações.

Escrito pelo francês Eric Dardel e publicado pela primeira vez em 1952, ‘O Homem e a Terra’ é um breve ensaio de aproximadamente 100 páginas, dividido em dois capítulos. Não é uma leitura que agrade a todos - e não porque seja difícil, mas simplesmente porque a maioria das pessoas não está preparada para esse tipo de reflexão. Tanto é assim que os próprios profissionais para os quais a obra foi direcionada demoraram anos para reconhecerem sua importância. ‘O Homem e a Terra’ é uma obra destinada em especial aos geógrafos, mas pessoas de outras áreas também podem aproveitar essa leitura, desde que estejam interessados em investigar e/ou desenvolver a relação mais íntima dos seres humanos com a Terra e a natureza. ‘O Homem e a Terra’ é, também, uma obra que instiga o leitor a escrever sobre os lugares que visita e estuda. Por essa razão, escritores e poetas também podem se beneficiar muito dessa obra.
Tanto é que já nas primeiras páginas Dardel apresenta vários trechos que parecem ter sido escritos não por geógrafos, mas por poetas. Para ele, “a escrita, tornando-se mais literária, perde clareza, mas ganha em intensidade expressiva, devido ao estremecimento da existência que é dada pela dimensão temporal restaurada” pg. 04. Isso porque, para Dardel, antes de ser uma ciência exata, a Geografia é uma “vontade intrépida de correr o mundo, de franquear os mares, de explorar os continentes; conhecer o desconhecido, atingir o inacessível” pg. 01. Para Dardel, a “inquietude geográfica precede e sustenta a ciência objetiva” pg. 01.
Para o geógrafo preocupado com a objetividade, o espaço é homogêneo, uniforme e neutro, e o modo como se pode conhecer esse espaço se dá por medições objetivas e descrições impessoais. No entanto, não é assim que os seres humanos experimentam o espaço. O mar, a montanha, a floresta, a caverna, os campos, o deserto: todos esses espaços possuem uma dimensão simbólica e tem algo a nos ensinar. O ser humano, tanto quanto transforma a natureza, também é transformado por ela.
Dardel propõe, então, uma geografia que não se resuma a matemática e cálculo, mas que leve em conta também essa dimensão simbólica.
O geógrafo que mede e calcula vem atrás: à sua frente, há um homem a que se descobre a "face da Terra"; há o navegante vigiando novas terras, o explorador na mata, o pioneiro, o imigrante, ou simplesmente o homem tomado por um movimento insólito da Terra, tempestade, erupção, enchente. Há uma visão primitiva da terra que o saber, em seguida, vem ajustar. pg. 07.
Dardel discorre brevemente sobre os diferentes espaços e seus significados. O espaço telúrico, o espaço aquático, o espaço aéreo, o espaço construído, a paisagem e, por fim, fala sobre a existência do homem sobre essa realidade geográfica, como o homem experimenta o território em que vive. O texto é bastante literário, poético, e muito inspirador.

No segundo capítulo, Dardel ensaia uma breve história da geografia. A humanidade, que inicialmente se entende como filho da Terra e vê todas as criaturas vivas como sendo suas irmãs, termina por ver o ambiente à sua volta apenas como recurso a ser explorado para benefício humano. A geografia têm refletido essa mudança, transformando-se em uma disciplina preocupada apenas com a objetividade e praticamente abandonando sua humanidade.
O que Dardel propõe é que a geografia resgate essa humanidade. Não se trata de abandonar as medições e a objetividade; trata-se apenas de resgatar a poesia e a dimensão simbólica do espaço; interessar-se pelo modo como as pessoas se relacionam com o lugar onde vivem sua existência.
Talvez, por não ser geógrafo, muita coisa me passou despercebida. De todo modo, ‘O Homem e a Terra’ foi uma leitura bastante proveitosa. O mundo já não me parece o mesmo. Existe agora um universo completamente novo para ser explorado e apreciado. Mesmo os locais mais próximos e que pelos quais sempre passo ganharam novas tonalidades de azul, verde e amarelo. O vento que vem do leste agora me parecem mais intenso. Tenho a impressão que eles cantam uma antiga canção, de quando a humanidade e a natureza eram ainda uma e única coisa só.
A geografia tem muitas vezes o sentido de uma fuga de si mesmo. Quantos viajantes ilustres, desde Chateaubriand até Montherlant, percorreram a Terra, com seu tédio e sua inquietude, na esperança de renovar sua energia perdida, de reencontrar seu primeiro assombro, essa ingenuidade do olhar que haviam perdido. Procura muito artificial e sem proveito. A superioridade a que se atribui o homem moderno sobre o mundo circundante aparenta ser um obstáculo instransponível para que tenha uma harmonia sincera com a floresta, com o mar ou com a montanha. pg. 95-96
O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica Eric Dardel Editora Perspectiva 162 páginas
1952: ano da primeira edição



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